São 21h49, acabo de chegar em casa, completamente suado, para
começar a escrever este texto. Não sei quantos quilômetros caminhei, mas foram
muitos – quase cinco horas andando, praticamente sem parar. Eu não estava
sozinho. Éramos (somos) milhares, acredito que muitas dezenas de milhares. São
Paulo desceu à rua em peso neste 17 de junho de 2013.
É um momento
histórico ainda indecifrável, mas certamente preciosíssimo. Em menos de 15
dias, a partir da maior capital do país, uma farsa se ergueu e em seguida
desmoronou diante dos olhos de todos os brasileiros. A televisão documentou
tudo.
Hoje, a
outrora furiosa Polícia Militar do governador Geraldo Alckmin (PSDB) se fez
praticamente imperceptível aos nossos olhos, ouvidos, gargantas, narizes,
bocas, ânimos e músculos. A palavra de ordem que mais se fez ouvir, depois de
“Vem! Vem! Vem pra rua, vem, contra o aumento, vem!”, foi a seguinte: “Que
coincidência! Não tem polícia, não tem violência!”. Esta foi a farsa que
desmoronou: os vândalos não eram (não éramos) os manifestantes.
Outra frase
se fez ouvir ao longo de todo o trajeto, repetida inúmeras vezes, cada vez que
um helicóptero (o “globocop”? ) zunia em cima de nossos crânios. Você há de me
perdoar pelo palavrão, mas o grito indígena, tribal, dizia assim: “Ei, Globo!
Vai tomar no cu!”.
Éramos um
bando de invejosos detestando por rancor a maior rede de TV do país, quiçá do
Hemisfério Sul? Não exatamente. O grito de asco à Globo é parte do desmoronar
da farsa: afinal, quem foi que nos disse, aos altos brados, durante estes dias
todos, que “vândalos” alienígenas haviam invadido a cidade para depredá-la?
Quem berrava, sem parar, que os “vândalos” éramos nós? A Globo, as outras
emissoras, os jornais em queda contínua de tiragem. Os ouvidos de jornalistas
policiais sensacionalistas como o tal Datena e aquele vagaroso alucinado da TV
Record arderam forte nesta noite.
Não só os
deles. Uma divertida projeção que ocupava toda a fachada de um grande edifício
no largo da Batata (e que pelo que entendi era operada pelo MPL, o Movimento
Passe Livre) mandava slides sensacionais, um atrás do outro. "Haddad, vem
governar com a gente." Um “cala boca” ao lado da silhueta de Arnaldo
Jabor, o comentarista “político” tresloucado da Globocop. “ “Brasil, deixa eu
te amar”, slogan deliciosamente inspirado no samba dolente de Agepê. “Abaixo o
PIG” – PIG, para quem não sabe, é o Partido da Imprensa Golpista, como
blogueiros independentes rebatizaram a mídia tradicional conservadora instalada
no país.
Fui vestido
como estava me sentindo: colorido de verde, laranja, vermelho, azul, marrom,
roxo, preto, amarelo. Sabia que todas as cores políticas, até mesmo as
autoproclamadas apolíticas e/ou apartidárias, estariam presentes: segunda era
dia de salada de frutas. Vi até um sucessor pós-urbano de movimentos como o MST
(Movimento Sem Terra): o MSP, Movimento dos Sem Partido. Deste eu estou fora,
mas tudo bem, faz parte.
Particularmente,
sou um entusiasta do governo pluripartidário de Dilma Rousseff (PT): votei
nela, acredito nela e confio nela. Por isso, fui com minha camiseta estampada
com o rosto desenhado da Dilma jovem, na época em que ela fazia nas ruas o que
estamos fazendo hoje (e por isso acabou presa e torturada pela ditadura
militar).
Como de
praxe, tive muito medo: desta vez, medo de ser hostilizado por causa da minha
camiseta desenhada “Dilma, eu te amo”. Sim, havia gente xingando Dilma nas
ruas, como havia gente xingando vários dos principais políticos em atividade no
país (“Alckmin, fascista, você é o terrorista!”, “tucano fascista é inimigo do
paulista”) (só não ouvi ninguém xingar FHC, parece que não se lembraram dele) .
Quem está na chuva é para se molhar: em momentos de catarse coletiva, as
palavras de raiva se diregem inevitavelmente aos governantes de plantão, sejam
quais forem.
Mas,
retomando o raciocínio. Estava com medo de ser hostilizado por portar
Dilma-jovem na minha camiseta (por favor, entenda os signos como quiser, ou
como puder). Não fui hostilizado nem uma vez sequer. Não significa
necessariamente nada (será que eu seria hostilizado se fosse vestido com a
careca de José Serra?).
Me desminto:
talvez a ausência de beligerância signifique algo, sim, algo bastante amplo.
Hoje, havia um pacto coletivo de não-violência vigorando no ar por onde
passássemos. Ônibus parados em grandes vias como a avenida Faria Lima, morada e
vizinhança dos milionários de São Paulo, foram ornados por post-its mimosos,
flores e cartazes inofensivos do tipo #VemPraRua.
Ainda no
largo da Batata, uma fotógrafa subiu num ponto de ônibus (mídia vândala?) para
apanhar um ângulo privilegiado da manifestação. A multidão gritou “desce!” até
que ela obedecesse. Na Faria Lima, um garoto com uniforme do Corinthians subiu
na capota de um ônibus. A multidão gritou “desce!” e “sem violência!” até que
ele descesse. Quando desceu, a multidão aplaudiu o rapaz em coro. Este era o
pacto, o pacto que reduzia a farsa a cinzas.
“Ooooooô, o
povo acordou!” era outro dos slogans mais insistentes. Na Brigadeiro Luís
Antônio, um skatista passou em frente àquele hotel em formato de melancia
estimado por ricos & famosos e afirmou, em alto e bom som: “Os senhores nos
desculpem, estamos abrindo caminho para o novo”.
Chorei
muito, pela primeira vez na noite, quando ganhamos a avenida Paulista, a joia
da coroa capitalista da burguesia paulistana, paulista e brasileira. Não tanto
as dos Jardins e do Ibirapuera, mas janelas dos prédios da Paulista estavam
coalhadas de gentes e de lençóis brancos. Chovia muito – mas não era água, era
papel picado que caía dos edifícios.
O
helicóptero (não sabemos de quem) chegava perto do Masp e a multidão fazia
gestos de “sai pra lá”, aos gritos de (perdão outra vez) “ei, Globo, vai tomar
no cu!”.
Quando eu
ouvia o kuarup “vem, vem pra rua, vem, contra o aumento, vem”, meus neurônios
davam cambalhotas e me faziam entender “vem, vem pra rua, vem, contra a
inflação, vem”.
Afinal, quem
é contra a inflação? Quem é a favor da inflação? Quem é a favor dos juros
altos? Quem é favor dos juros baixos? Quem torce pela carestia do tomate, do
vinagre, do chuchu e do gás-pimenta? Quem mesmo está torcendo pela explosão da
inflação no Brasil? Quem quer desinflação via redução do preço do transporte
público?
Acho que sei
essas respostas, mas não vou responder, por questão de, er, “educação”
jornalística. “Lula!, Lula!, olê, olê, olá!”, ouvi, apenas uma vez pouco antes
de vir embora, na quebrada da Paulista com a Augusta.
Bandeiras do
Brasil eram o que mais havia. Erguidas para o alto, tremulando em hastes ou
cobrindo os ombros dos manifestantes. Muitos carregavam nas maçãs do rosto a
pintura de guerra (ou melhor, de paz) nas cores verde e amarelo. “Eu sou
brasileiro! Com muito orgulho! Com muito amor” era um dos slogans que eu mais
ouvia e que mais me emocionavam enquanto subia a Brigadeiro Luís Antônio.
Antes de
terminar, deixo minha última pergunta de hoje (sem ter visto nada do que a
mídia televisiva aprontou nesta noite inesquecível): quem pode ser contrário a
um movimento que se declara tão aberto e desbragadamente pró-Brasil? São 22h49,
e tudo está bem.